Introdução
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, muitas mudanças ocorreram nas políticas públicas voltadas aos povos indígenas no Brasil. A criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e posteriormente o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS) possibilitaram a implementação de ações e programas de saúde nos territórios indígenas. A avaliação desses programas tem sido um importante desafio tanto para a consolidação dos princípios do SUS quanto para a tomada de decisões sobre ajustes ou reformulações de suas propostas iniciais, buscando melhorias nos processos administrativos, políticos e sociais 1.
A Política Nacional de Saúde Bucal, em 2004, consolidou a atenção à saúde bucal pela reorganização dos serviços de saúde. A atenção à saúde é orientada por um modelo assistencial resultante de um processo histórico contraditório durante o qual diversos atores sociais, setores e instituições interagem sob a lógica de distintos interesses 2. Assim, como em outras populações, a saúde bucal dos povos indígenas guarda uma estreita relação com determinantes ambientais, culturais, econômicos e biológicos 3,4. Os estudos internacionais sobre a saúde de povos indígenas têm indicado disparidades na oferta de serviços de saúde bucal entre indígenas e não indígenas 5,6. Entretanto, alguns artigos têm relatado experiências e abordagens bem-sucedidas de saúde bucal em populações indígenas como a integração de serviços odontológicos na atenção primária à saúde, programas intersetoriais de promoção de saúde bucal e ações de reconhecimento das práticas tradicionais, especialmente no Canadá, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia 7,8,9,10,11,12,13.
No Brasil, em 2011, o Ministério da Saúde definiu a reorganização do modelo de atenção em saúde bucal direcionado aos povos indígenas, por meio de ações de controle das doenças bucais e de promoção e recuperação da saúde, planejadas com base em um diagnóstico das condições de saúde-doença, subsidiado pela epidemiologia e informações sobre o território indígena, além do acompanhamento do impacto das ações de saúde bucal por meio de indicadores adequados 14.
Os indicadores de saúde são instrumentos valiosos para a gestão e avaliação da situação de saúde de uma população. De forma geral, são medidas que trazem informações relevantes sobre determinados atributos do estado de saúde, bem como do desempenho do sistema de saúde, facilitando o monitoramento dos objetivos e metas em saúde 15. As condições de acesso a serviços de saúde refletem as características da oferta desses serviços, podendo facilitar ou dificultar sua utilização pelos indivíduos, de acordo com suas necessidades. A discussão sobre acessibilidade aos serviços de saúde bucal é bastante complexa, necessitando de estudos que contemplem perspectivas, de forma a apreender a realidade localmente observada 16.
Para assegurar a confiança das informações produzidas nos serviços de saúde é preciso monitorar a entrada de dados e os valores dos indicadores, revisando periodicamente a consistência da série histórica. A utilização de sistemas de informação de saúde é uma forma de aproveitamento de dados secundários de coleta continuada. Eles vêm sendo crescentemente empregados na pesquisa e na avaliação em saúde, além de ser um facilitador na tomada de decisão dos profissionais e gestores da saúde 17.
O Parque Indígena do Xingu (PIX) foi a primeira terra indígena reconhecida no país, em 1961. O Projeto Xingu da Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), desenvolve ações e pesquisas em saúde no PIX desde 1965. Com a criação do SASI-SUS em 1999, o Projeto Xingu foi convidado pelo Departamento de Saúde Indígena da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e por lideranças indígenas do PIX a fazer convênios para dar início à implementação do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu. Sob coordenação do Projeto Xingu, as ações de saúde bucal passaram a assumir feições programáticas. Porém, a pequena quantidade de dentistas na equipe de saúde e a grande demanda assistencial acumulada ao longo dos anos levou o Projeto Xingu a buscar parcerias para a qualificação da atenção à saúde bucal, na forma de um modelo de atenção pautado na vigilância da saúde. Nesse contexto, a partir de 2003, a Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FORP-USP) e o Projeto Pro Nativos, financiado pela Colgate, passaram a colaborar na atenção à saúde bucal no Xingu 18.
Durante a execução dos convênios, problemas estruturais e operacionais da FUNASA geraram descontinuidade dos serviços, fragilidades nos fluxos de financiamentos e falta de monitoramento da execução das ações 19. O impacto no DSEI Xingu foi sentido e, a partir de 2007, as parcerias sofreram alterações. A FUNASA interrompeu a celebração de convênio com a FORP-USP e o Projeto Pro Nativos se encerrou em razão do término do financiamento de sua instituição mantenedora. O convênio do Projeto Xingu com a FUNASA sucedeu-se até 2010, quando a gestão do SASI-SUS passou a ser de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).
A análise da situação de saúde como prática sistemática com auxílio de indicadores apresenta um potencial ainda inexplorado nos diversos níveis dos serviços de saúde, apesar da grande quantidade de dados produzidos rotineiramente. A escolha de indicadores acessíveis, simples, úteis e disponíveis nos sistemas de informação valoriza as bases de dados existentes e indica o seu potencial no apoio à gestão 20. O uso de indicadores na avaliação de programas de saúde indígena é um requisito para a formulação de novas propostas de intervenção e tomada de decisão, com o intuito de aprimorar os programas e serviços ofertados.
No presente estudo, analisou-se a evolução de indicadores de cobertura de primeira consulta odontológica programática, tratamento odontológico básico concluído, proporção de exodontia em relação aos procedimentos, cobertura média mensal da escovação dental supervisionada do PIX, no período de 2004-2013.
População e métodos
O PIX localiza-se na região nordeste do Estado do Mato Grosso, na parte sul da Amazônia brasileira, com uma população total de aproximadamente 6 mil pessoas, abrigando 16 etnias. O território estudado se localiza na região central e ao norte do PIX e corresponde às áreas de abrangência dos polos-bases Pavuru, Diauarum e Wawi. No total são 44 aldeias das etnias Kisêdje, Ikpeng, Kaiabi, Trumai, Kamayura, Yudjá, Waurá e Tapayuna e 2.957 pessoas de acordo com o censo populacional de 2013. A população desse território é jovem, representada por 38,2% menores de 15 anos e apenas 5,4% maiores de 60 anos. Constata-se uma distribuição similar entre os sexos, sendo 51% do sexo feminino e um predomínio da etnia Kaiabi, representando 43% da população do território.
Foi realizado um estudo descritivo de série temporal, com dados secundários obtidos do banco de dados do Projeto Xingu da UNIFESP, de 2004-2006, e do Sistema Local de Informação de Saúde (SLIS) do DSEI Xingu, de 2006-2013. Foram utilizados instrumentos e fichas para a obtenção de dados da atenção individual e coletiva de saúde bucal. Para o controle e avaliação da atenção à saúde bucal prestada, foram definidos pela FUNASA e pelo Ministério da Saúde alguns indicadores a ser utilizados pela equipe de saúde para acompanhar a dinâmica do atendimento realizado, o impacto e os resultados do trabalho odontológico na população indígena 21. Foram selecionados os seguintes indicadores, todos aplicados para a área relativa ao baixo, médio e leste Xingu: (1) cobertura de primeira consulta odontológica programática para aferir o acesso ao tratamento odontológico 22. Esse indicador mostra o percentual de pessoas que receberam uma primeira consulta odontológica programática, com a finalidade de diagnóstico e, necessariamente, a elaboração de um plano preventivo-terapêutico, para as necessidades detectadas e posterior realização do tratamento odontológico restaurador no âmbito da atenção básica; (2) tratamento odontológico básico concluído para quantificar o percentual de pacientes que teve tratamento concluído e está, portanto, livre de cárie dentária e doença periodontal em relação ao que realizou consulta odontológica programática; (3) proporção de exodontia em relação aos procedimentos preconizada pelas diretrizes de pactuação de objetivos, metas e indicadores de 2013-2015 do Ministério da Saúde com o intuito de representar o percentual de extrações dentárias realizadas em relação ao total de procedimentos clínicos individuais preventivos e curativos 15; (4) cobertura média mensal da escovação dental supervisionada que corresponde à média da ação coletiva de escovação dental supervisionada preconizada pelas diretrizes de pactuação de objetivos, metas e indicadores de 2013-2015 do Ministério da Saúde com o intuito de verificar o acesso ao fluoreto por meio da escovação com creme dental de uma população pelo número de participantes da escovação dental supervisionada mensalmente em relação à população 15.
Os dados foram processados no programa Microsoft Excel 2007 (Microsoft Corp., Estados Unidos) e, para organizar a apresentação dos dados, foram utilizados gráficos e tabelas que expressam a distribuição de frequências absolutas e relativas. Numa análise de série temporal em área de reduzida mudança demográfica, os indicadores selecionados são muito úteis para determinar se a intervenção está ampliando ou restringindo a cobertura da escovação dental supervisionada, o acesso ao tratamento odontológico programático e sua conclusão. Variações amplas não são esperadas e denotam problemas para assegurar os recursos necessários e mantê-los em operação.
O projeto de pesquisa que deu origem ao presente estudo foi submetido à aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP) da Faculdade de Saúde Pública/USP (CAAE nº 40968815.0.0000.5421) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), sob o parecer nº 1.004.479. Foram seguidas as recomendações para pesquisas que envolvem populações indígenas, inclusas nas Resoluções nº 196/1996 e nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
Resultados
O trabalho desenvolvido no DSEI Xingu, no período analisado, abrangeu ações de promoção e proteção de saúde, recuperação e reabilitação. Os dados relativos aos procedimentos coletivos e individuais foram consolidados mensalmente. Os procedimentos individuais foram divididos em preventivos, restauradores, endodônticos, periodontais e cirúrgicos. Os coletivos contemplaram procedimentos relacionados à educação em saúde, higiene bucal supervisionada, aplicação tópica de flúor e controle de distribuição de escova, creme e fio dental. A obtenção dos dados e a construção dos indicadores foram realizadas em julho e agosto de 2015. Foram analisados 360 relatórios mensais, consolidados em trinta planilhas anuais.
Na Tabela 1, são apresentados os indicadores cobertura de primeira consulta odontológica programática e tratamento odontológico básico concluído, referentes aos anos 2006-2013. Nos anos de 2004 e 2005, não constavam informações sobre primeira consulta odontológica programática, impossibilitando a construção de tais indicadores.
Indicador | Medida | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 |
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Cobertura de primeira consulta odontológica programática | Total de primeiras consultas odontológicas programáticas realizadas em determinado local e período/População total em determinado local e período x 100 | 67,4 | 69,9 | 60,0 | 44,7 | 53,4 | 71,2 | 70,2 | 70,6 |
Tratamento odontológico básico concluído | Total de pessoas que concluíram o tratamento odontológico básico em determinado local e período/Total de pessoas que realizaram consulta odontológica programada em determinado local e período x 100 | 44,9 | 48,1 | 79,9 | 66,7 | 52,8 | 65,3 | 63,3 | 57,7 |
Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena Xingu/Projeto Xingu.
A cobertura da primeira consulta odontológica foi superior a 60% em todos os anos analisados, exceto 2009 e 2010 com uma cobertura de 44,7% e 53,4%, respectivamente. Os resultados apresentados mostraram um declínio do acesso ao tratamento odontológico programático a partir de 2008, sendo restabelecido somente a partir de 2011. A Figura 1 ilustra as diferenças, indicando uma variação entre 44,7% a 71,3% com uma taxa média para o período de 63,4%.
Referentemente ao tratamento odontológico básico concluído, encontra-se um aumento entre os anos 2006 e 2008, de 44,9% para 79,9%. A taxa média foi de 59,8% para o período de 2006-2013. No ano de 2009, constataram-se o segundo maior indicador de tratamento odontológico concluído e o menor valor de cobertura de primeira consulta odontológica em todo o período analisado. De 2010-2013, os valores variaram de 52,8% a 65,3%.
O total de exodontias em relação ao total de procedimentos é um indicador que pode refletir a priorização das ações em curativas, preventivas ou cirúrgicas. A Tabela 2 mostra os valores referentes ao período de 2004-2013 obtidos para extrações dentárias, procedimentos clínicos individuais preventivos e curativos e proporção de exodontia. Os valores mínimo e máximo de extrações dentárias foram respectivamente, 170 e 604, com uma média de 499,5 no período. No ano de 2009, foram encontrados o menor número de extrações e o segundo menor número de procedimentos preventivos e curativos. Os valores mínimo e máximo de procedimentos preventivos e curativos foram, respectivamente, 2.481 e 12.507, com uma média de 7.346,2 no período.
Medida | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 |
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Número total de extrações dentárias | 602 | 549 | 604 | 546 | 466 | 170 | 481 | 480 | 512 | 585 |
Número total de procedimentos clínicos individuais preventivos e curativos | 2.481 | 5.134 | 4.765 | 7.115 | 10.353 | 4.215 | 7.076 | 12.507 | 10.647 | 9.169 |
Proporção de exodontia em relação aos procedimentos | 24,3 | 10,7 | 12,7 | 7,7 | 4,5 | 4,0 | 6,8 | 3,8 | 4,8 | 6,4 |
Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena Xingu/Projeto Xingu.
O indicador proporção de exodontia expressa seu valor mais alto no ano de 2004. Há uma queda brusca entre 2004 e 2005 de 24,3% para 10,7%. Esse indicador mantém uma queda importante com o passar dos anos chegando a 3,8% em 2011, com uma taxa média de 8,6% no período de análise. A Figura 2 ilustra os valores encontrados em cada ano.
O indicador escolhido para ilustrar as ações coletivas foi cobertura média mensal da escovação dental supervisionada. A Tabela 3 mostra o número de participantes da escovação dental supervisionada e os valores do indicador para o período de 2004-2013 que indica uma variação entre 1,2 a 23,3%, com uma taxa média para o período de 10,8%.
Medida | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | 2012 | 2013 |
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Número total de participantes de ação coletiva de escovação dental supervisionada | 1.652 | 2.052 | 3.657 | 3.643 | 2.876 | 863 | 385 | 6.731 | 3.961 | 8.252 |
Média da ação coletiva de escovação dental supervisionada | 6,5 | 8,0 | 12,7 | 12,3 | 9,9 | 2,9 | 1,2 | 19,3 | 11,5 | 23,3 |
Fonte: Distrito Sanitário Especial Indígena Xingu/Projeto Xingu.
Discussão
A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) afirma que a melhoria da qualidade de vida da população se justifica na melhoria do acesso, resolução das necessidades em saúde, estímulo à participação social e redução das desigualdades 23. Iniquidades entre indígenas e não indígenas, relacionadas ao acesso a serviços de atenção à saúde bucal e métodos preventivos regulares são evidentes e deixam clara a vulnerabilidade dessas populações, inclusive em relação à cárie dentária e suas complicações 5,24. As intervenções em saúde introduzidas sem um planejamento adequado, que não possibilitem a universalização e a equidade, têm exercido o indesejável efeito de ampliar as desigualdades em saúde 25,26.
Em relação ao tratamento odontológico básico concluído, verificaram-se valores mais elevados no DSEI Xingu no período sob análise, em comparação aos valores divulgados na síntese dos indicadores de vigilância em saúde indígena entre os anos 2004-2010. Enquanto a taxa média para a população xinguana foi 59,8%, para a população indígena em geral foi 16,7%, variando de 12,8% em 2004 para 23% em 2010 27. As elevadas taxas encontradas nesse indicador podem estar relacionadas ao trabalho diferenciado construído historicamente pelo Projeto Xingu na região. O Projeto Xingu é o mais longo programa de extensão e pesquisa em saúde indígena, com mais de 50 anos de existência, sendo uma exceção no país. O estabelecimento de parcerias com a FORP-USP possibilitou a colaboração de professores e alunos para a estruturação do programa de atenção à saúde bucal em todas as etapas e melhorou o aporte de insumos, especialmente de material de higiene bucal, fornecidos pelo Projeto Pro Nativos e utilizados no trabalho de campo no PIX. Com isso, foram possíveis a realização de inquéritos epidemiológicos, o fortalecimento do trabalho preventivo nas escolas indígenas, a ampliação do acesso ao flúor tópico, a formação continuada de indígenas para atuarem na saúde bucal, a capacitação da equipe para o trabalho intercultural e a participação do controle social 18.
Outro aspecto positivo foi a redução na proporção de exodontia em relação aos procedimentos individuais. Isso pode estar associado à extensão de cobertura propiciada pela parceria com a FORP-USP. O comportamento desse indicador pode revelar o pouco acesso da população aos serviços de saúde bucal, gerando uma demanda acumulada de exodontias, a falta de investimento em ações preventivas em longo prazo e o modelo de atenção hegemônico 28. Importante perceber que a melhora em tal indicador parece estar mais relacionada ao aumento do número absoluto de procedimentos preventivos e curativos do que à diminuição do número absoluto de extrações dentárias. Ainda assim, o indicador evidencia a priorização dos procedimentos preventivos e curativos com o decorrer dos anos.
As condições de acesso refletem as características da oferta de serviços de acordo com as necessidades e demandas da população, apesar de não traduzir, num primeiro momento, em reversão do modelo de atenção e não analisar a resolutividade dos serviços 29. Analisando a cobertura da população com primeira consulta odontológica programática é possível identificar a necessidade de implantação de medidas para ampliação do acesso aos serviços odontológicos e a avaliação do perfil de atendimento desse serviço 22. Nota-se uma cobertura favorável de primeira consulta odontológica programática no PIX, sendo maior que 60% na maioria dos anos analisados, mostrando a busca pela ampliação do acesso à assistência odontológica programática. O declínio desse indicador a partir de 2008 e seu o restabelecimento em 2011 podem estar relacionados ao período de encerramento das parcerias e da mudança da gestão do SASI-SUS, influenciando negativamente os indicadores de saúde bucal. Com a mudança da gestão, os DSEI passaram por problemas estruturais e, apesar do aumento significativo de orçamento e recursos humanos, o que se observou foi a não priorização de ações que assegurassem a atenção básica à saúde como o investimento em saneamento básico, na qualificação de profissionais, no controle e fiscalização das ações e no planejamento efetivo 30. No DSEI Xingu não houve aumento de profissionais da área de odontologia, apesar de o número de enfermeiros ter triplicado após a criação da SESAI. Os processos de compras de kits de higiene bucal, materiais permanentes e insumos para a realização do tratamento restaurador atraumático, ficaram centralizados em Brasília, e durante todo o ano de 2010 não foram disponibilizados.
O único estudo encontrado, em povos indígenas, que utilizou um indicador de acesso aos serviços de saúde bucal foi o realizado no PIX e indica um aumento significativo dos valores entre 2004 e 2006. Embora os indicadores tenham sido calculados de forma diferente deste estudo, é perceptível o aumento do número de atendimentos durante o período, em consequência da maior disponibilidade de recursos humanos 18. Estudos com populações não indígenas, em bases de dados dos municípios de Belo Horizonte (Minas Gerais), Amaral Ferrador (Rio Grande do Sul) e João Pessoa (Paraíba), relataram melhora do indicador de primeira consulta odontológica programática no período analisado (1999-2010), em decorrência da ampliação do número de profissionais de saúde bucal contratados pela estratégia saúde da família, a favorável incorporação de redes de cuidados em saúde bucal e a capacitação de profissionais para o preenchimento de informações 31,32,33.
A integralidade da atenção à saúde bucal, proposta pela Política Nacional de Saúde Bucal, pode ser garantida com a oferta adequada de ações intersetoriais, individuais e coletivas, que contemplem as dimensões biológica, psicológica e social e sejam articuladas com os outros níveis de atenção. Um dado preocupante para a integralidade da atenção foi o fraco desempenho do indicador de escovação supervisionada em alguns anos analisados. Uma questão fundamental na implantação dos programas de saúde bucal nos DSEI é a necessidade de priorizar a dimensão preventiva e educativa, considerando o contexto sociocultural, político e econômico de cada comunidade e o acesso ao flúor 34. A média da ação coletiva de escovação dental supervisionada foi o indicador que apresentou maior variação entre todos os anos, de 1,2% a 23,3%. Os piores valores foram encontrados nos anos 2009 e 2010; um resultado que pode estar associado ao encerramento da parceria com o Projeto Pro Nativos que, entre outros aspectos, assegurava acesso a material de higiene bucal. Somente em 2011, esse material é novamente disponibilizado pela SESAI, possibilitando o aumento dos valores desse indicador.
O número de estudos científicos sobre programas de saúde bucal para povos indígenas no Brasil ainda é pequeno e algumas experiências descritas, como nos Enawenê-nawê e nos Xavante de Pimentel Barbosa, refletem sobre a necessidade de priorizar a dimensão preventiva, a formação de indígenas para atuação na saúde bucal, o acesso continuado aos materiais de higiene bucal e o estabelecimento de parcerias com instituições não governamentais 25,35. Alguns estudos internacionais sobre programas de saúde bucal para povos indígenas têm reforçado a necessidade de observar algumas estratégias para que um programa de saúde bucal seja bem-sucedido como: a necessidade de estratégias e abordagens de promoção de saúde por ciclos da vida, a garantia do acesso a materiais para educação em saúde de cuidadores e gestantes, a formação de profissionais indígenas para atuação na saúde bucal, a atuação multiprofissional e a abordagem de fator comum e a integração da atenção à saúde com as práticas tradicionais 8,10,11,12,13. Projetos que surgiram de preocupações, necessidades e envolvimento direto da comunidade tiveram melhores resultados em longo prazo 8,12.
Importante destacar as várias estratégias positivas realizadas no PIX com a equipe de saúde, particularmente com os agentes indígenas de saúde, para a consolidação de ações intersetoriais com a educação e para o aumento da cobertura de escovação supervisionada. Vários fatores relacionados a recursos logísticos, humanos e culturais impossibilitaram a ampliação do acesso. Uma das bases da estratégia era a abordagem interdisciplinar para solucionar alguns dos problemas encontrados.
Um exemplo foi inserir a escovação supervisionada e a aplicação tópica de flúor durante as etapas de imunização para ampliar a cobertura de acesso ao flúor. O programa de imunização se mostrou oportuno para o trabalho preventivo em saúde bucal por causa da sua periodicidade, alta cobertura, organização logística, alta adesão e possibilidade de acompanhamento de profissionais de forma regular e interdisciplinar, mediante a abordagem ampla do cuidado. A imunização traz uma “memória positiva” para a comunidade, pois foi por intermédio do programa inicial do Projeto Xingu que a mortalidade diminuiu e permanece na memória de muitas lideranças, que relatam sua prioridade e importância. Tal estratégia não foi realizada nos anos de 2009 e 2010, refletindo no indicador correspondente.
Os resultados deste estudo mostram que os programas de intervenção na saúde de populações indígenas se tornam cada vez mais necessários à melhoria dos serviços de atenção à saúde indígena e requerem monitoramento e adoção de estratégias diferenciadas. Uma limitação deste estudo se refere à impossibilidade de uma análise mais aprofundada dos indicadores por variáveis importantes para compreensão das especificidades socioculturais envoltas no processo saúde-doença dessas populações, como polo base, etnia, sexo e grupo etário. Durante a análise dos dados, verificou-se que algumas informações presentes nos instrumentos de registro do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) não foram registradas pelos profissionais de saúde, não estando disponíveis nos relatórios consolidados, fonte de dados do presente estudo. Isso gera reflexão sobre a importância da capacitação e acompanhamento sistemático do preenchimento adequado desses instrumentos para a qualidade e completude dos dados, possibilitando uma avaliação adequada aos serviços de saúde. Cumpre ainda destacar as limitações do uso de dados secundários derivados dos sistemas de informação utilizados, o que vai ao encontro do estudo de Sousa et al. 36 sobre a necessidade de ajustes estruturais no SIASI para monitoramento das condições de saúde nas comunidades indígenas. Ainda que o SIASI apresente limitações desde a concepção à operacionalização 36, há que se reconhecer que apresenta potencialidades para o uso em pesquisas avaliativas e para os serviços de saúde.
Conclusões
Este estudo tem implicações importantes para a implementação de programas de saúde bucal em áreas indígenas e relata estratégias de intervenções e parcerias para melhorar a oferta e organização dos serviços, a equidade e o acesso da população indígena à saúde bucal, buscando diminuir os entraves burocráticos e as iniquidades de saúde. Descreve também caminhos para a busca da integralidade da atenção pela participação da própria comunidade e articulação com outros setores, por meio de estratégias sensíveis às especificidades locais.
O estudo também expõe as dificuldades e a insensibilidade da gestão do SASI-SUS para assegurar a continuidade de um programa de atenção à saúde bucal que vinha contribuindo para mudanças positivas nos indicadores e nas condições de saúde bucal durante seu período de atividade. A descontinuidade do programa e o período de mudança da gestão do SASI-SUS trouxeram problemas para a saúde bucal da população do DSEI Xingu. Apesar de avanços durante o período estudado, a piora de alguns indicadores de saúde bucal nos últimos anos coincide também com a piora de outros indicadores de saúde. Isso produz reflexão sobre a influência direta de estratégias e decisões tomadas por gestores na saúde dos povos indígenas e alerta indígenas e indigenistas para que estejam constantemente atentos em seus movimentos e para que a conquista de um subsistema específico de atenção diferenciada de saúde não seja perdida.
A produção de indicadores para o uso dos serviços de atenção à saúde indígena do DSEI Xingu é uma importante contribuição. Diante dos resultados obtidos, pode-se concluir que o acesso à saúde bucal tem mostrado uma boa cobertura, apesar do constatado período de queda. O indicador de tratamento odontológico básico concluído apresenta um alto percentual comparado com a população indígena como um todo no mesmo período do estudo.
As quedas encontradas no indicador de exodontia podem estar relacionadas ao apoio da FORP-USP até 2008. O final desse apoio e o período de mudança de gestão influenciaram negativamente todos os indicadores de saúde bucal do DSEI Xingu. Apesar de os indicadores de escovação supervisionada revelarem a necessidade da priorização das ações preventivas, o que se verificou foi o predomínio de um modelo assistencialista, em que a alta necessidade de tratamento é priorizada em relação às ações de prevenção de doenças e promoção da saúde. Não obstante, a ação multiprofissional durante as visitas nas aldeias e nas etapas de imunização, como forma de ampliar a média de escovação dental supervisionada, mostrou-se positiva. A atuação multiprofissional ampliou a relevância das ações de promoção de saúde bucal tanto para os profissionais de saúde quanto para as comunidades
Os desafios relacionados à integralidade da atenção e à articulação com as outras instâncias do SUS, com a participação efetiva dos indígenas, devem ser pensados para a continuidade desse programa, mediante o diálogo e a negociação. Integrar instituições de ensino e pesquisa na atenção à saúde, de forma sustentável, pode ser um dos possíveis caminhos para diminuir as iniquidades do acesso à saúde e a efetividade de programas voltados à população indígena que se torna cada vez mais vulnerável às doenças e às interferências políticas que permeiam a gestão dos serviços de saúde.